Um universo parado no tempo

Lucas Martins
4 min readJun 21, 2022

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Daquele jeito doce de sempre, ela terminava sua apresentação. Dançava ballet desde criança, mas, com 14 anos, perdera os pais e a irmã em um acidente e a dança e todo o resto deixaram de fazer tanto sentido. A música clássica provocava diversas lembranças, todo violoncelo soava triste, toda valsa era de luto.

Jogou fora as sapatilhas e foi morar com a tia em outra cidade, estudar outra coisa, trabalhar com outra coisa. A vida é mais difícil quando não se vê graça em nenhuma canção. Em virtude de todos os sofrimentos por que ela passou, não havia resquício de esperança que não se dissolvesse em lágrimas horas depois, no escuro e frio do seu quarto. Mas não gostava de envolver outros nisso.

Entendendo do pior jeito a brevidade da vida, não quis mais se relacionar significativamente com ninguém, por um provável medo de desperdiçar seus amores em pessoas que podem partir a qualquer instante. Isso tudo lhe revirou a cabeça, não durante um ano ou dois, mas por dez longos anos.

E agora aos vinte e quatro, já formada, trabalhando, resolveu ter aula de dança aos sábados, tentar ser menos sedentária. Foi nessa época que eu a conheci, e como se histórias desse tipo me perseguissem, conheci-a em uma parada de ônibus.

Enquanto ela corria para pegar o ônibus, a sua mochila abriu e uma das sapatilhas terminou caindo. Tomei comigo aquele calçado deveras esquisito e comecei a correr seguindo-a ininterruptamente. Ela já havia entrado no ônibus, eu entrei também, procurei-a com os olhos em cada assento, e o motorista deu partida. Paguei ao cobrador e passei a buscar mais atentamente a dona daquela sapatilha, como se se tratasse de uma versão rodoviária do conto da Cinderela.

Quando a achei, ela me agradeceu com olhos brilhantes e um sorriso de gratidão sincera, como se sua vida estivesse sendo salva. De fato, ela estava a caminho do ensaio e ficaria em maus lençóis se a sapatilha tivesse decidido ficar no meio do caminho.

Conversamos ao longo daquela estrada esquisita, mas, no decorrer da viagem, eu deixei de atentar para a nossa jornada, e passei a me concentrar unicamente na minha companhia. Tão doce, meiga, gentil, mas falava com uma seriedade própria sobre a dança, como um cientista apresentando seu mais novo invento, e eu, que não sabia nada, fui-me envolvendo ao assunto, por entender de música, de ritmo, de valsa.

Aos poucos perdi a atenção no assunto, atentei para seus olhos fitos e despreocupados, e para sua boca falando sem parar, como se estivesse muda há um século e tivesse obtido uma cura milagrosa. O ônibus chacoalhava nos buracos, meu cérebro sacudia em pensamentos: bem, ela não me conhecia, e eu não a conhecia, mas se nos conhecêssemos, certamente seria um prazer inigualável tê-la conhecido, ainda mais do jeito em que nosso país está.

Minha mente divagava, mas voltei a mim, voltei a mim quando ela disse que precisava descer e eu tinha acabado de dizer a ela que havia sido realmente um prazer inigualável— meu, que coisa ridícula! — e então ela me chamou para a apresentação, que seria na outra sexta. Espaço Cultural, outra sexta, 20h00. Mais uma vez, que o príncipe encantado aqui não tem boa memória: Espaço Cultural, outra sexta, 20h00.

Na outra sexta, eu fui, sentei no meio, como se a qualquer momento o refletor pudesse se direcionar para mim, e toda a plateia iria esperar que eu cantasse We Are The Champions ou coisa que o valha. Daquele jeito doce de sempre, ela terminou sua apresentação aos aplausos de Deus e do mundo, e no fim de tudo, me deu um dos melhores abraços que já me deram em toda a minha vida: tudo bem, com um pé atrás de desconfiança, mas com uma baita ternura em forma de gratidão carinhosa: “eu pensei que você não fosse vir”.

Ela não era de tantos amigos, e pelo que percebi, eu fui o único amigo a ir nessa apresentação. Depois, fomos jantar e o infeliz aqui perguntou: “e os seus pais, hein?”, daí ela me contou a história barra-pesada que eu contei aqui pra vocês, antes do episódio da sapatilha.

Ela chorou, inclusive. E eu também. E ela se levantou e me deu o segundo melhor abraço que eu já ganhei em toda a minha vida.

Foi tudo muito rápido, uma semana é pouco tempo para esse tipo de relação surgir, para dois estranhos chorarem na frente um do outro, ainda mais com o país do jeito em que está. Foi um chororô inigualável, só pensei. E depois rimos das pessoas à nossa volta, e imaginamos cada uma delas em um cenário esquisito como o nosso.

Criamos tantos universos naquela noite que por alguns instantes esquecemos o mundo real, das dores e das perdas, e criamos o nosso próprio mundo, cheio de aparentes acasos, coincidências inusitadas que transformam nossa entediante rotina.

Inventamos todo um universo feito sob medida para aliviar o fardo, onde todo abraço dura muito e toda tristeza dura pouco. Um universo parado no tempo.

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Lucas Martins

Cristão, marido, pai, missionário. Formado em Teologia (Betel) e em Filosofia (UFC).