Um credo pessoal

Lucas Martins
12 min readDec 27, 2022

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Desde os meus tempos de Seminário, quero escrever um texto desse (em 2023 terei 8 anos de formado), e quando consigo finalmente parar e escrever, não ficou do jeito que eu quero.

Mesmo assim, decidi me livrar logo desse fardo e colocar aqui no Medium para que meus 3 leitores matem a curiosidade.

Aqui há uma reflexão geral sobre o peso das nossas posições teológicas e também um pouco de quais são as minhas convicções, perspectivas e opiniões.

Espero que gostem.

A transparência como valor

Falsos mestres costumam esconder suas verdadeiras posições teológicas para poder agradar o máximo de pessoas. O próprio Jesus já havia nos advertido: “tudo o que fazem é para serem vistos pelos homens” (Mt 23.5). Paulo diz que eles rejeitaram a fé e a boa consciência (1Tm 1.19). Pedro diz que eles introduzem dissimuladamente seus pensamentos destruidores dentro da igreja (2Pe 2.1).

Os discípulos de Jesus são gente que ama a verdade, gente que gosta de andar na luz, gente que tem a transparência como valor. Sim, e “andar na luz como Ele na luz está” (1Jo 1.7) é aquilo que nos ajuda a manter uma fé sincera, um coração puro e uma consciência limpa diante de Deus e das pessoas (1Tm 1.5).

“Quem pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz, temendo que as suas obras sejam manifestas. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, para que se veja claramente que as suas obras são realizadas por intermédio de Deus”.

(João 3:20–21)

Escrevo esse texto para ser transparente com você que por alguma razão me acompanha, mas acima de tudo para ser transparente comigo mesmo. Escrevo para meditar. Escrevo e penso: eu creio nisso mesmo? Creio de todo o meu coração, de toda a minha alma e de todo o meu entendimento naquilo que afirmo crer?

As três árvores (1648) — Rembrandt

Convicção, perspectiva e opinião

Todas as doutrinas cristãs são importantes, mas nem todas têm o mesmo grau de importância. Existem aquelas sobre as quais precisamos ter convicções firmes e inegociáveis, mas existem perspectivas e opiniões para as quais não é necessário haver consenso no corpo de Cristo. Podemos divergir sobre elas de maneira saudável. Explicando um pouco mais.

Uma convicção seria uma crença central da fé cristã histórica que é crucial à salvação. Um exemplo é a Santíssima Trindade ou a ressurreição de Jesus (1Co 15.1–8). Negar isso é negar o ensino mais importante de Jesus: Seu ensino sobre Si mesmo.

A perspectiva seria uma crença baseada em uma interpretação da Bíblia, da qual você pessoalmente tem certeza, mas ainda assim consegue ter comunhão com pessoas que discordam de você, visto que ela não é central à fé cristã histórica nem crucial à salvação. Alguns exemplos: a quantidade de água que será utilizada no batismo (imersão ou aspersão?), o alcance da obra de Cristo (Cristo morreu por todos ou pelos eleitos?).

É importante lembrar que a força com que você acredita na sua perspectiva pessoal não a transforma em uma convicção obrigatória para todos os cristãos.

Uma opinião é aquela crença que não é ensinada de forma clara nas Escrituras, assim gerando mais de uma crença cristã correta em torno de um tema. Quando não existem princípios bíblicos suficientes para determinar uma questão, podemos desfrutar de liberdade cristã nesse campo.

Em Romanos 14.5–6, Paulo coloca a questão dos alimentos e dos dias sagrados no âmbito das opiniões:

Há quem considere um dia mais sagrado que outro; há quem considere iguais todos os dias. Cada um deve estar plenamente convicto em sua própria mente. Aquele que considera um dia como especial, para o Senhor assim o faz. Aquele que come carne, come para o Senhor, pois dá graças a Deus; e aquele que se abstém, para o Senhor se abstém, e dá graças a Deus.

Em Gálatas 1.7–8, porém, o apóstolo não parece estar se referindo a uma mera divergência de opinião.

O que ocorre é que algumas pessoas os estão perturbando, querendo perverter o evangelho de Cristo. Mas ainda que nós ou um anjo do céu pregue um evangelho diferente daquele que lhes pregamos, que seja amaldiçoado!

Convicções

Um jeito imaginativo de investigar qual é a sua convicção mais profunda é se perguntar: por qual declaração de fé você seria capaz de morrer? Fiz esse exercício algumas vezes na minha vida, e cheguei à conclusão de que não morreria por muitas das minhas crenças, mesmo por aquelas das quais tenho certeza, porque algumas delas não valem a pena tanto sacrifício.

Outras, porém, além de ter certeza, elas valem a pena todo sacrifício. Quais são elas?

Creio em Deus Pai, Todo-poderoso, Criador do Céu e da terra.

Creio em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, o qual foi concebido por obra do Espírito Santo; nasceu da virgem Maria; padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; ressurgiu dos mortos ao terceiro dia; subiu ao Céu; está sentado à direita de Deus Pai Todo-poderoso, donde há de vir para julgar os vivos e os mortos.

Creio no Espírito Santo; na Santa Igreja Católica (universal); na comunhão dos santos; na remissão dos pecados; na ressurreição do corpo; na vida eterna.

Amém.

O Credo Apostólico declara a fé cristã em uma expressão sucinta e direta. É nisso que eu creio, é por isso que eu morreria, é por isso que tantos discípulos de Jesus morreram e morrem até hoje. Menção honrosa para os Credos Niceno, Atanasiano e Calcedônio, credos ecumênicos que buscaram alinhar a Igreja em uma só doutrina da Trindade.

O Pacto de Lausanne (1974) também é parte da minha identidade de cristão, não apenas pelo seu compromisso interdenominacional, como também pela clareza como definiu a missão da Igreja no mundo contemporâneo. Não é só um pacto doutrinário, mas é um convite à ação. Vocês podem discordar de mim, e tudo bem, mas eu creio que é muito difícil ser cristão sem ter um compromisso com a evangelização e com o amor ao próximo. Por isso, o Pacto de Lausanne está aqui no âmbito das convicções.

Estamos profundamente tocados pelo que Deus vem fazendo em nossos dias, movidos ao arrependimento por nossos fracassos e desafiados pela tarefa inacabada da evangelização. Acreditamos que o evangelho são as boas novas de Deus para todo o mundo, e por sua graça, decidimo-nos a obedecer ao mandamento de Cristo de proclamá-lo a toda a humanidade e fazer discípulos de todas as nações. Desejamos, portanto, reafirmar a nossa fé e a nossa resolução, e tornar público o nosso pacto.

Também subscrevo a declaração de fé da Cru Brasil (organização missionária com a qual trabalho). Ela apresenta 17 pontos que são parte da fé cristã histórica baseada na Bíblia Sagrada, independentemente da denominação. Segue um trecho:

Aceitamos o ensino doutrinário no qual, historicamente, tem havido concordância geral entre todos os verdadeiros cristãos. Devido ao feito especial do nosso movimento, desejamos permitir liberdade de convicção em outros assuntos doutrinários, contanto que qualquer interpretação seja baseada somente na Bíblia, e que nenhuma dessas interpretações venha a se tornar um obstáculo que prejudique o ministério para o qual Deus nos chamou.

Essas declarações não são aceitos por apenas uma igreja, mas por milhares de pessoas de várias igrejas e denominações diferentes, e por isso eu os coloquei no âmbito das convicções. Essas crenças fazem com que eu me sinta unido a irmãos e irmãs de todo o mundo: temos um só Deus, um só Senhor, uma só fé. Somos uma única igreja.

Minhas perspectivas

Embora sejamos uma única igreja, parece que nunca foi o objetivo de Deus que todos fossem iguais, falassem a mesma língua, tivessem a mesma perspectiva e opinião em absolutamente todos os pontos (Romanos 14). Unidade bíblica não é uniformidade. Ao longo da história, grupos cristãos foram se agrupando em torno de ênfases comunitárias, e muito cedo eram possível ver distinções entre eles. Cada denominação enfatiza algumas coisas que outras não o fazem, e assim vamos trabalhando juntos naquilo para o que o Senhor chamou cada um.

Embora eu seja batista desde os meus 9 anos de idade, não coloco a nossa Declaração Doutrinária no mesmo patamar das convicções, pois fazer isso seria tratar a denominação como se fosse a porta para a salvação. Embora eu creia firmemente nessas ênfases, acredito que elas funcionam melhor quando estão colocadas no âmbito das perspectivas. Vamos deixar o círculo das convicções apenas para as crenças realmente fundamentais do Cristianismo.

Se a igreja fosse uma mesa de som, deveríamos programar as convicções que nos unem para soarem mais alto do que as perspectivas e opiniões que frequentemente são motivo de divisão.

Os instrumentos podem soar, mas suavemente, apenas como um temperinho melódico na grandiosa sinfonia da igreja de Jesus. Se eles soam mais alto do que devem, sua dissonância invadirá a harmonia muito além do esperado e o resultado será como tomar um choque nos ouvidos.

A declaração de fé da Convenção Batista Brasileira (1985), que inclusive está passando por uma consulta pública para uma nova revisão, apresenta uma compreensão teológica dos distintivos do povo batista, as nossas ênfases.

Para os batistas, as Escrituras Sagradas, em particular o Novo Testamento, constituem a única regra de fé e conduta, mas, de quando em quando, as circunstâncias exigem que sejam feitas declarações doutrinárias que esclareçam os espíritos, dissipem dúvidas e reafirmem posições. Cremos estar vivendo um momento assim no Brasil, quando uma declaração desse tipo deve ser formulada, com a exigência insubstituível de ser rigorosamente fundamentada na Palavra de Deus. É o que faz agora a Convenção Batista Brasileira, nos 19 artigos que seguem.

E eu amo ser batista. Amo nosso regime de governo democrático, nossa simplicidade litúrgica e nossa diligência na obra missionária. Amo nossas ceias em comunidade e nossos batismos com muita água!

Minhas opiniões (introdução e enrolação)

O apóstolo Paulo em Romanos 14 trabalha uma questão delicada. Mesmo dentro de uma mesma comunidade, havia pessoas pensando diferente em alguns assuntos.

Esses assuntos já haviam sido motivo de grandes controvérsias entre os judeus, e agora que a igreja era também composta de gentios, o apóstolo Paulo precisa de sabedoria para lidar com potenciais conflitos.

Para a surpresa de muitos, ele não exortou aqueles grupos divergentes a que pensassem exatamente igual, mas os estimulou apenas na seguinte direção: “um não despreze o outro”.

Todos nós temos direito a articular nossas próprias opiniões sobre a fé, sobre o mundo. Temos direito a ter uma consciência que é livre de constrangimentos de quaisquer pessoas, organizações, empresas, políticos. Também temos direito de expressar nossa opinião livremente guardadas as devidas orientações legais do país em que estivermos (por exemplo, no Brasil, não é permitido usar a “liberdade de expressão” para fazer incitação ao crime, ameaça etc.).

Agora, quem é cristão precisa entender que opinião não têm peso de convicção, não é padrão aferidor da espiritualidade do outro, não pode virar régua. Eu acredito em verdades absolutas (o evangelho!), mas também acredito na possibilidade de interpretações particulares da verdade (essas interpretações, sim, podem estar erradas).

“Arminianismo”, “calvinismo”, “luteranismo” não são o evangelho, não têm o mesmo peso que o evangelho, e nenhuma delas é uma balança com a qual podemos pesar toda a Igreja. E o que elas são? São perspectivas e opiniões. Funcionam melhor quando estão nesse lugar.

Ok, agora que te enrolei por 10 minutos, vou falar quais são as minhas opiniões.

John Wesley

Minhas opiniões (agora sim!)

Estou em um campo bem armínio-wesleyano. O que isso significa? Eu rejeito todo tipo de determinismo (social, biológico, histórico e… divino). Não creio que Deus determinou todas as coisas, como o calvinismo defende. Isso implicaria que Deus teria pré-determinado também o pecado e o mal, e dessa maneira seu caráter não seria bom (ao fazer o mal) nem justo (ao punir algo que ele mesmo determinou). Como Deus é bom e justo, então Ele não pode ter determinado o pecado. O pecado, então, seria fruto da liberdade da criação de Deus. A liberdade é, em si, algo bom que Deus criou. Porém, o ser humano fez um mau uso dessa liberdade e assim se tornou escravo do pecado. Nesse estado de queda, ele está totalmente inclinado para o mal e ele só será capaz de dizer sim a Deus quando a graça de Deus liberta o seu arbítrio, proporcionando ao ser humano a possibilidade de crer, algo que sem a graça lhe era inacessível. Agora restaurado pela graça, ele pode vir a crer ou então pode resistir a essa graça e permanecer na incredulidade e impiedade (At 7.51, Mt 23.37).

Creio na depravação total da humanidade, na eleição condicional pela fé, na expiação universal, na graça preveniente e resistível e na possibilidade de apostasia. Aqui no meu perfil do Medium tem um texto que explica cada ponto, e também há um texto que escrevi mostrando algumas implicações do arminianismo no começo do liberalismo político. A liberdade é um dom de Deus que nos iguala em um só rebanho de libertos e nem mesmo o Estado mais totalitário poderá nos privar disso.

Também creio que o cristão pode viver uma vida vitoriosa sobre o pecado, não por nosso mérito e bondade, mas pela graça de Deus que nos enche do Espírito e nos santifica pela fé (tradição de Keswick). Nesse aspecto, fui muito influenciado por Bill Bright e pelos materiais da Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo (hoje, Cru) que defendem a vida cheia do Espírito Santo. Não preparei um texto explicando esse tópico em detalhes, mas quem quiser saber mais sobre isso pode ler sobre a tradição de Keswick no livro “5 Perspectivas sobre a Santificação” (Editora Vida).

Com relação aos dons do Espírito Santo, creio na sua atualidade (continuismo), mas ainda preciso estudar mais antes que eu possa afirmar se o dom de línguas é a evidência inicial do batismo com o Espírito Santo, como os irmãos pentecostais defendem. Estou mais inclinado a acreditar com meus irmãos wesleyanos de que, sim, existe um ato do Espírito que pode ser chamado de batismo ou de enchimento, e a evidência disso seria uma santificação do coração (Atos 15.8–9), podendo ou não ser acompanhada de línguas. Rejeito o cessacionismo, embora entenda como uma perspectiva possível, acredito que ela deixa de perceber a revelação progressiva (e não regressiva) dos atos de Deus no Novo Testamento. O Espírito desceu do céu e trouxe dons para a igreja (Ef 4), e em nenhum momento a Bíblia ensina que Ele levou esses dons de volta para o céu.

Também acredito que aqueles que morreram sem a capacidade de conhecer o evangelho (bebês e crianças pequenas, pessoas com alguma deficiência cerebral/cognitiva) são recebidos pelo Senhor com a graça da salvação. Aqueles que morreram sem conhecer o evangelho, mas já tinham capacidade de ouvir, entender e conhecer a Deus, eu creio que Deus se revelou para eles de alguma maneira e então serão julgados de acordo com a sua resposta à luz que receberam, podendo ser salvos ou não (Romanos 1–2). E aqueles que morreram conhecendo o evangelho serão julgados pela maneira como responderam ao evangelho que receberam (João 3.16–17). Não há salvação fora do evangelho, nem fora de Cristo, mas creio que os efeitos da cruz de Cristo alcançaram até mesmo aqueles que jamais tiveram condições de ler João 3.16. O nome dessa visão é inclusivismo. Não tem a ver com as “igrejas inclusivas” (em que alguns pecados deixaram de ser pecado) ou com o “universalismo” (a ideia de que todos serão salvos).

Ainda transitando em campo wesleyano, creio em uma visão igualitarista da igreja e da sociedade. De acordo com essa ideia, homens e mulheres são iguais em valor e podem exercer liderança na família e na sociedade. Não creio em uma hierarquia natural baseada apenas no gênero. Isso significa que, sim, eu sou favorável à ordenação de mulheres ao pastorado, e penso assim pelo menos desde 2016. Não é meu objetivo entrar em detalhes, mas aqui tem um fio longo que preparei com muitos artigos (F. F. Bruce, Craig Keener, Gordon Fee, Stanley Grenz, Roger Olson e outros). Aqui no Brasil temos bons teólogos (e boas teólogas) na defesa dessa posição. Fico feliz de não estar sozinho.

Com relação ao fim dos tempos, estou bastante inclinado para o preterismo parcial, a ideia de que vários eventos escatológicos preditos no Novo Testamento já aconteceram. A Grande Tribulação seria a destruição de Jerusalém no ano 70 d. C., a besta seria Nero, tudo isso baseado na palavra de Jesus de que “não passará esta geração sem que todas essas coisas se cumpram” (Mateus 24.34). Essa visão é compatível com o amilenismo e com o pós-milenismo, e dessa maneira minha visão sobre o milênio tem oscilado entre essas duas nos últimos anos.

Desculpem-me por soltar essa informação de maneira tão rápida, mas o texto já está suficientemente longo e vocês sempre podem consultar pessoas melhores do que eu, como os livros “Os últimos dias segundo Jesus” (R. C. Sproul) e “Apocalipse para leigos” (Kenneth Gentry), um amilenista e um pós-milenista que representam bem o preterismo moderado.

Ah, a inerrância. Concordo com a declaração de fé da Cru: “A base única de nossa fé é a Bíblia, a Palavra de Deus, infalível, composta dos 66 livros do Antigo e do Novo Testamento. Cremos que ela foi inspirada pelo Espírito Santo de maneira singular, verbal e completa, e que foi escrita sem erro nos manuscritos originais. Ela é a autoridade suprema e final em todos os assuntos que fala”. Me parece uma boa definição de inerrância, se é que essa é uma tarefa possível.

É claro que há muito mais coisa do que isso no planeta da teologia, como dispensacionalismo vs. aliancismo, mas acho que esses debates são os mais populares hoje, então optei por começar por eles.

Considerações finais

Acho que poderia me resumir como um cristão de convicção, batista de perspectiva e armínio-wesleyano de opinião.

Eu não espero que você concorde comigo. Só quis escrever para que você me conheça um pouco mais.

Acima de tudo, que haja respeito nas nossas interações (reais ou virtuais).

Que a transparência seja um valor.

Que, diante da diferença de opinião, tenhamos o mesmo coração.

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Lucas Martins

Cristão, marido, pai, missionário. Formado em Teologia (Betel) e em Filosofia (UFC).