Situações abusivas na igreja

O elefante está na sala, o que fazer?

Lucas Martins
4 min readFeb 10, 2023

Antes de ser missionário, trabalhei em um curso de Língua Portuguesa. A dona da escola gritava todos os dias com alunos, funcionários e professores. Ninguém tinha coragem de enfrentá-la, porque ela xingava e demitia mesmo. Era um ambiente de trabalho em que todos tinham muito medo de errar, e muitos ali seguiam um caminho de bajulação.

Depois de uma típica reunião de segunda-feira, em que muitos de nós ouvimos gritos raivosos da chefe, um colega meu me chamou no canto e me disse: “eu não vou aguentar essa situação por muito tempo, não nasci pra ser capacho de ninguém”. A fala dele ficou na minha cabeça: eu deveria me submeter àquilo tudo ou deveria tentar mudar as coisas? Decidi pela primeira opção. Como precisava do emprego, escolhi aguentar em silêncio por mais alguns meses… Além do mais, a Bíblia não ensina a submissão nesse tipo de situação?

Algumas igrejas não são muito diferentes. Quantas situações abusivas nós enfrentamos calados porque, bem, deveríamos ser submissos, não?

Sim, a Bíblia nos ensina a abrir mão dos nossos direitos (1Co 9.11–12), dar a outra face, caminhar uma segunda milha, orar pelos nossos inimigos (Mt 5), mas ela também nos ensina que podemos sim lutar pelos nossos direitos em situações de abuso (At 22.25–30, Cl 2.18, Gl 5.1) e principalmente pelos direitos daqueles que não tem ninguém por eles (Pv 31.8–9, Tg 1.27), ajudando a construir uma igreja que seja um ambiente de cura e bondade (Gl 4.16–17, Rm 12.9–16).

“Erga a voz em favor dos que não podem defender-se, seja o defensor de todos os desamparados. Erga a voz e julgue com justiça; defenda os direitos dos pobres e dos necessitados”. (Provérbios 31.8–9)

Frequentemente somos dóceis como os coríntios: “vocês suportam até quem os escraviza ou os explora, ou quem se exalta ou lhes fere a face!” (2Co 11.20). Aceitamos tudo, somos submissos a tudo, nos sujeitando até a líderes que tentam nos escravizar e nos explorar por meio de um falso discurso de humildade e de zelo espiritual.

Esses falsos líderes até dizem frases que parecem humildes (“não olhem para mim, olhem para Jesus!”), mas na verdade estão fugindo da responsabilidade. O apóstolo Paulo disse o contrário: “sede meus imitadores como eu sou de Cristo” (1Co 11.1).

Eles até dizem coisas que parecem zelosas (“quem sai da igreja por causa das pessoas nunca entrou nela por causa de Cristo!”), mas é só uma maneira de não falar sobre o elefante que está na sala, aquele problema óbvio sobre o qual ninguém quer discutir porque assim é mais confortável.

Em um dos nossos projetos missionários na universidade, conheci uma menina que havia sido criada na igreja, era envolvida em quase todos os ministérios da igreja, e o pastor a chamava de filha pela proximidade e afeto que tinham. Até que um líder da igreja a assediou sexualmente, mais de uma vez. Ela compartilhou com uma senhora que era também da liderança da igreja e foi aconselhada a esquecer isso e não contar para ninguém porque “seria capaz de destruir a família e o ministério dele”. Ela saiu da igreja, não se sentia mais segura lá dentro.

Existem abusos acontecendo no ambiente eclesiástico, e por isso mesmo pessoas estão entrando na igreja por causa de Cristo e saindo porque não encontraram Cristo lá. Não encontraram um ambiente de amor, de salvação e de bondade, mas sim um ambiente de hipocrisia, mentira, assédio moral ou sexual e até racismo, sempre protegido por uma cultura de preservação da instituição — como se a instituição fosse mais importante que as pessoas a quem ela deveria servir.

Paulo instrui os colossenses a se firmar no evangelho e não aceitar esse ambiente propício à proliferação de falsos líderes: “que ninguém os engane” (Cl 2.4), “que ninguém os escravize” (Cl 2.8), “que ninguém os julgue” (Cl 2.16), “não deixem que ninguém os humilhe” (Cl 2.18).

“…pessoas estão entrando na igreja por causa de Cristo e saindo porque não encontraram Cristo lá.”

Aos gálatas, ele diz que “alguns falsos irmãos infiltraram-se em nosso meio para espionar a liberdade que temos em Cristo Jesus e nos reduzir à escravidão. Não nos submetemos a eles nem por um instante, para que a verdade do evangelho permanecesse com vocês” (Gálatas 2.4–5). O conselho de Paulo ao fim da carta resume bem qual é o ponto: “foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Portanto, permaneçam firmes e não se deixem submeter novamente a um jugo de escravidão” (Gl 5.1).

É interessante perceber que Paulo não se calou nem mesmo diante de Pedro, confrontando-o pessoalmente de maneira bastante incisiva e direta. Quando Paulo viu que Pedro estava sendo hipócrita e arrastando muitos irmãos à sua hipocrisia, ele não teve medo ou vergonha de enfrentar o problema de frente. Ele não se omitiu (Gl 2.11–14).

Não é fácil ver pessoas escravizando, julgando, humilhando outras, muitas vezes sendo protegidas pela estrutura da própria igreja. “Quando uma parte do corpo sofre, todo o corpo sofre junto” (1Co 12.26). Mas o que podemos fazer quando isso acontece perto da gente?

  1. Ouvir: escute aquela pessoa sem interromper e sem julgar. Jamais a culpe pelo que aconteceu. Ela precisa se sentir ouvida, acolhida e respeitada.
  2. Ajudar: esteja disponível a ajudá-la a buscar apoio psicológico, advogados ou até mesmo a polícia.
  3. Acompanhar: ofereça um acolhimento contínuo (até na sua casa, se for necessário) e lembre-se de que a recuperação é um processo que pode levar tempo.

Já conhecemos os problemas, agora precisamos nos unir em torno das soluções. “No tempo que se chama Hoje” (Hb 3.13), precisamos de comunidades que verdadeiramente ajudam a curar. A imagem de Deus no nosso próximo não pode mais ser violada, dessa maneira, debaixo do nosso nariz, sem que ninguém sinta ou faça nada.

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Lucas Martins

Cristão, marido, pai, missionário. Formado em Teologia (Betel) e em Filosofia (UFC).