Por que uns são salvos e outros não?

Uma perspectiva bíblica e arminiana

Lucas Martins
7 min readOct 24, 2022

Introdução

Quando eu estava no Seminário, essa pergunta era o xibolete para saber se uma pessoa era calvinista ou não.

Por que uns são salvos e outros não?

Os calvinistas tinham a resposta na ponta da língua: eleição incondicional. Deus quis salvar uns e não quis salvar outros, sem levar em conta nenhum fator relacionado a essas pessoas.

Para os arminianos, meu time, a resposta não era tão simples. Como dizer tão rapidamente que Deus não quer salvar alguém, quando há tantas passagens apontando o desejo de Deus de salvar todas as pessoas (1Tm 2.3–6, 2Pe 3.9)? Tínhamos outra leitura das passagens mais usadas pelos calvinistas, como Romanos 9 e Marcos 4.

Eu apresentei um pouco da minha perspectiva sobre Romanos 9 aqui nessa palestra que dei em 2020.

Hoje, quero falar um pouco sobre Marcos 4, sim, a famosa Parábola do Semeador.

Como todos já conhecem a parábola (Marcos 4.2–20, Mateus 13.1–23), vou ser mais objetivo.

Por que Jesus falava por parábolas?

Eu creio que a Parábola do Semeador oferece a melhor resposta para a nossa pergunta. Ela lança luz sobre todas as parábolas!

“Vocês não entendem esta parábola? Como, então, compreenderão todas as outras parábolas?” (Mc 4.13)

É aqui que Jesus explica o motivo de falar por parábolas.

Ele lhes disse: “A vocês foi dado o mistério do Reino de Deus, mas aos que estão fora tudo é dito por parábolas, a fim de que, ‘ainda que vejam, não percebam, ainda que ouçam, não entendam; de outro modo, poderiam converter-se e ser perdoados!’” (Mc 4.11–12)

No excelente livro “Entendes o que lês?”, Gordon Fee e Douglas Stuart defendem a ideia de que as parábolas funcionavam como um “filtro”, para cativar aqueles realmente interessados e repelir os incrédulos. Jesus apenas revelava o significado a quem se aproximava com humildade, os arrogantes que se achavam sábios naturalmente se afastavam do Mestre (cf. Mt 11.25). De outro modo, até poderiam converter-se e ser perdoados!

Esse trecho final demanda uma explicação dos calvinistas. Se as parábolas eram usadas para privar os não-eleitos da salvação, então por que Jesus ainda coloca a possibilidade de conversão e perdão para aqueles que estavam longe?

E por que uns são salvos e outros não?

Na explicação da parábola, Jesus fala de variadas razões pelas quais aquelas sementes não frutificaram: Satanás, tribulações, perseguições, preocupações da vida, engano das riquezas, anseios por outras coisas…

Ele também explica o motivo de algumas sementes terem dado fruto: “outras pessoas são como a semente lançada em boa terra: ouvem a palavra, aceitam-na e dão uma colheita de trinta, sessenta e até cem por um” (Mc 4.20).

A Parábola do Semeador seria uma ilustração do próprio Jesus semeando a palavra do Reino por meio de parábolas. Os interessados frutificavam, ouvindo Jesus e o seguindo. Os desinteressados se mantinham longe, por causa da sua arrogância e por várias outras razões.

Por que uns solos frutificaram e outros não? Por várias razões, mas nenhuma delas é baseada no desejo do semeador, pois quem semeia quer ver fruto.

Nenhum solo deixou de frutificar “porque o semeador não quis” ou “porque ele não semeou”. Ele lançou a Palavra em solos distintos e recebeu respostas distintas.

Jesus confronta os judeus porque queria que eles florescessem e frutificassem, mas eles não quiseram (Mt 23.37). Enquanto isso, muitas cidades de gentios o recebiam de maneira positiva.

Esse contraste entre as cidades gentílicas e as cidades judaicas pode ser visto em algumas parábolas (Filho Pródigo, O Fariseu e o Publicano, As Bodas), mas também está de maneira muito clara em Mateus 11.

Então Jesus começou a denunciar as cidades em que havia sido realizada a maioria dos seus milagres, porque não se arrependeram. “Ai de você, Corazim! Ai de você, Betsaida! Porque se os milagres que foram realizados entre vocês tivessem sido realizados em Tiro e Sidom, há muito tempo elas se teriam arrependido, vestindo roupas de saco e cobrindo-se de cinzas. Mas eu lhes afirmo que no dia do juízo haverá menor rigor para Tiro e Sidom do que para vocês. E você, Cafarnaum: será elevada até o céu? Não, você descerá até ao Hades! Se os milagres que em você foram realizados tivessem sido realizados em Sodoma, ela teria permanecido até hoje. Mas eu lhes afirmo que no dia do juízo haverá menor rigor para Sodoma do que para você”. Naquela ocasião Jesus disse: “Eu te louvo, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque escondeste estas coisas dos sábios e cultos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, pois assim foi do teu agrado. Todas as coisas me foram entregues por meu Pai. Ninguém conhece o Filho a não ser o Pai, e ninguém conhece o Pai a não ser o Filho e aqueles a quem o Filho o quiser revelar”. (Mt 11:20–27)

Corazim, Betsaida, Cafarnaum são cidades judaicas. Tiro, Sidom e Sodoma, por sua vez, cidades gentílicas. O que Jesus está dizendo é simples. O Pai está revelando os mistérios do Reino aos marginalizados, aos pequeninos, e escondendo a salvação daqueles que se acham grandes, sábios e cultos.

Não se trata de uma eleição incondicional, mas de uma escolha divina que se baseia na resposta humana a essa revelação. Deus se agrada de pessoas humildes como o publicano da parábola, sinceras como a mulher samaritana, pequeninas e curiosas como as criancinhas. O ponto é que Deus quis salvar pessoas pela graça através da fé em Jesus e não com base em critérios étnicos ou de comportamento moral.

O eco em outras passagens

Em Isaías 5.1–7, o profeta entoa uma canção sobre um agricultor e sua vinha.

Cantarei para o meu amigo o seu cântico a respeito de sua vinha: Meu amigo tinha uma vinha na encosta de uma fértil colina. Ele cavou a terra, tirou as pedras e plantou as melhores videiras. Construiu uma torre de sentinela e também fez um tanque de prensar uvas. Ele esperava que desse uvas boas, mas só deu uvas azedas. “Agora, habitantes de Jerusalém e homens de Judá, julguem entre mim e a minha vinha. Que mais se poderia fazer por ela que eu não tenha feito? Então, por que só produziu uvas azedas, quando eu esperava uvas boas? Pois, eu lhes digo o que vou fazer com a minha vinha: Derrubarei sua cerca para que ela seja tranformada em pasto; derrubarei o seu muro para que seja pisoteada. Farei dela um terreno baldio; não será podada nem capinada, espinheiros e ervas daninhas crescerão nela. Também ordenarei às nuvens que não derramem chuva sobre ela”. Pois bem, a vinha do Senhor dos Exércitos é a nação de Israel, e os homens de Judá são a plantação que ele amava. Ele esperava justiça, mas houve derramamento de sangue; esperava retidão, mas ouviu gritos de aflição. (Is 5.1–7)

Apesar de ser uma poesia, o texto é bem claro. Deus sinceramente desejava que Israel se voltasse a Ele, e fez tudo o que era necessário para que isso acontecesse, mas ainda assim o povo “produziu uvas azedas”.

O semeador saiu a semear esperando frutificação, mas o resultado foi um fruto amargo de incredulidade obstinada. Jesus chorou ao ver a incredulidade do povo. As suas lágrimas eram sinceras. Ele queria salvação, mas em grande medida houve condenação dentro do seu próprio povo.

Pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que este fosse salvo por meio dele. Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, por não crer no nome do Filho Unigênito de Deus. Este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens amaram as trevas, e não a luz, porque as suas obras eram más. (Jo 3:17‭-‬19)

Não há qualquer indício de eleição incondicional aqui. A razão por que as pessoas não entram no Reino tem a ver com a incredulidade ativa e não com um desejo de Deus de que elas não entrem.

Uso a expressão “incredulidade ativa” para dizer que “a luz veio ao mundo, mas os homens amaram as trevas”, ou seja, são condenados não por falta de luz, mas porque ativa e conscientemente a rejeitaram, preferindo ficar nas trevas. Os homens são condenados porque amaram as trevas, não porque a luz deixou de vir.

Diferentemente da Bíblia, o calvinismo defende que a luz sequer chegou ao mundo, e que os homens amaram as trevas porque Deus assim o quis (no sentido de que ele era o único que poderia fazer com que eles amassem a luz, mas ele simplesmente não quis fazer isso).

Pense no jovem rico (Mc 10.17–31). Marcos diz que Jesus “o amou”, chamando-lhe ao discipulado, mas mesmo assim ele preferiu amar as riquezas. A posição calvinista causa problemas ao suscitar uma dúvida acerca da boa-fé do chamado de Jesus ao jovem rico. Se o chamado é irresistível, Jesus o chamou apenas por educação? Chamou-o sem querer chamá-lo? O texto diz que Jesus o amou, e o amor de Deus é sincero; o seu convite aos pecadores é tudo, menos um blefe.

E Romanos 9? E Romanos 9?

Eu não acredito que Romanos 9 siga uma linha diferente dessa que tenho apresentado aqui. O argumento de Paulo (explico melhor nesse vídeo) também envolve a mesma tensão entre judeus incrédulos vs. gentios crentes que permeia todo o Novo Testamento. De maneira muito precisa, o apóstolo arremata:

Que diremos, então? Os gentios, que não buscavam justiça, a obtiveram, uma justiça que vem da fé; mas Israel, que buscava uma lei que trouxesse justiça, não a alcançou. Por que não? Porque não a buscava pela fé, mas como se fosse por obras. Eles tropeçaram na “pedra de tropeço”. Como está escrito: “Eis que ponho em Sião uma pedra de tropeço e uma rocha que faz cair; e aquele que nela confia jamais será envergonhado”. Rm 9.30–33

O texto de longe mais usado pelos calvinistas, na verdade, só reforça a tese de que a justificação é pela fé, e não por uma eleição incondicional.

Por que uns são salvos e outros não?

Porque uns creem e outros não.

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Lucas Martins

Cristão, marido, pai, missionário. Formado em Teologia (Betel) e em Filosofia (UFC).