Por que não creio na graça comum?

Lucas Martins
6 min readNov 11, 2021

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“Que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Marcos 8.36)

Somos salvos pela graça!

O doce som da maravilhosa graça chegou até os nossos ouvidos, penetrou as profundezas do nosso coração e nos tirou da lama do pecado.

Somos salvos pela graça, não pela compreensão de detalhes teológicos acerca da graça. Isso, porém, não anula a importância de refinarmos continuamente as nossas concepções à luz da Bíblia.

Por exemplo, é claro na Bíblia que somos salvos pela graça (Efésios 2), mas de que maneira essa graça atua nos seres humanos?

Estudiosos calvinistas costumam fazer uma distinção interessante entre “graça comum” e “graça especial”, que gostaria de explicar primeiro antes de mostrar qual a minha perspectiva.

O que é a graça comum?

Wayne Grudem (aqui) apresenta uma definição bastante didática:

“Graça comum é a graça de Deus pela qual Ele dá às pessoas bênçãos inumeráveis que não são parte da salvação”.

Essas bênçãos não-salvíficas estão na esfera física (“a graça comum de Deus provê comida e material para roupa e abrigo”), na esfera intelectual (“toda ciência e tecnologia desenvolvida pelos não-cristãos é resultado da graça comum”), na esfera moral (“pela graça comum Deus também refreia as pessoas de serem tão más quanto poderiam”), na esfera da criatividade, na esfera social e política etc.

Grudem também diz:

“Os descrentes muitas vezes recebem mais graça comum que os crentes — eles podem ser mais habilidosos, trabalhar com mais esforço, ser mais inteligentes, mais criativos ou ter mais dos benefícios materiais desta vida para desfrutar”.

Porém, logo em seguida isso é qualificado:

“Isso não indica de forma alguma que eles são mais favorecidos por Deus no sentido absoluto ou que eles vão ganhar qualquer coisa relativa à salvação eterna, mas significa somente que Deus distribui as bênçãos da graça comum de vários modos, muitas vezes concedendo bênçãos bastante significativas a descrentes (…). Mesmo uma porção excepcional de graça comum não significa que quem a recebe será salvo”. (grifo meu)

É aí que entra a distinção entre “graça comum” e “graça especial”. Enquanto a primeira se refere apenas a benefícios materiais que são dados a todos, a última se refere às bençãos salvíficas que só são dadas àqueles que foram eleitos.

Eu concordo com Grudem (e com os calvinistas de maneira geral) de que Deus abençoa a todos independentemente se são crentes ou descrentes. Inclusive, é baseado nisso que eu acredito que podemos apreciar muito do que não cristãos tem produzido em termos de cultura e ciência. Tudo de bom que vemos no mundo provém da graça de Deus.

Porém, vejo três problemas na forma como essa ideia é geralmente apresentada pelos calvinistas:

  1. A oposição “graça comum vs. graça especial” me parece conter uma falácia de falsa dicotomia.

Essa falácia ocorre quando alguém apresenta dois conceitos (supostamente opostos) como se eles fossem as únicas opções disponíveis dentro de um determinado contexto. Por exemplo, na Política, quando alguém diz coisas como: “ou você é petista, ou você é bolsonarista”.

Um calvinista geralmente acredita que, em se tratando da relação divina com os seres humanos, ou Deus manifesta a graça comum, ou Deus manifesta a graça especial.

Eu creio que “a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os seres humanos” (Tito 2.11). Não apenas a graça comum, mas a graça salvadora. Não apenas a alguns seres humanos, mas a todos. Existe uma terceira via (rsrs).

2. A oposição “graça comum vs. graça especial” me parece conter uma falácia ad hoc.

Sabe criança quando muda as regras de uma brincadeira no meio do jogo só porque começou a perder? É mais ou menos isso. Em Filosofia, uma hipótese ad hoc (“com o fim de”) é um artifício teórico para salvar uma teoria de ser falseada, sendo que este artifício não faz parte do argumento original.

Essa forma de argumentar é enganosa porque a preocupação principal não é buscar a verdade, mas maquiar a teoria para blindá-la de críticas possíveis.

A oposição “graça comum vs. graça especial” é invocada por alguns calvinistas quando são inquiridos sobre o amor de Deus pelos perdidos. Como essa teoria não traz em si mesma nenhuma definição de amor, fica parecendo que ela foi invocada de modo arbitrário sem relação direta com a pergunta. Geralmente, eu tento achar um consenso com o calvinista sobre uma definição de amor (por exemplo, “amar é desejar e buscar o bem máximo de uma pessoa tanto quanto se possa apropriadamente fazer”) e então argumento que a “graça comum” não é bem uma prova de amor de Deus pelos perdidos, posto que o bem máximo de uma pessoa está em ter comunhão com Deus e a “graça comum” não propicia isso a um indivíduo.

3. A oposição “graça comum vs. graça especial” me parece conter um eufemismo.

Eufemismo é uma figura de linguagem utilizada para suavizar partes menos agradáveis de um discurso. Um exemplo frequente é quando um deputado diz a outro “Vossa Excelência faltou com a verdade!”, quando na verdade ele gostaria de dizer “seu mentiroso!”.

Um calvinista poderia apresentar a “graça comum” como um prêmio de consolação dado a quem vai ser condenado eternamente no fogo do inferno: “Deus não quis perdoar seus pecados e te dar felicidade eterna, mas pelo menos você ouviu Tom Jobim”. Falando assim, não parece uma ideia legal, mas se você apresenta como “bênçãos inumeráveis que não são parte da salvação” ou como “bênçãos bastante significativas”, então tudo parece mais bonito.

A graça generosa de Deus: uma perspectiva arminiana

A graça é de Deus. Junto com os calvinistas, eu creio que Deus é soberano e pode fazer tudo que quiser (Sl 115.3). Porém, o que Ele revelou que quer fazer? Para mim, esse é o ponto da discussão. Deus se revelou como um Ser generoso, amoroso, compassivo, misericordioso, galardoador daqueles que O buscam, justo, santo, perfeito em todas as suas obras. Nós só podemos estar em uma comunhão com Ele porque Ele mesmo se revelou a nós primeiro.

A graça é imprescindível. Sem ela, não podemos caminhar com Deus. Sem ela, não cremos no evangelho. Sem ela, não podemos parecer com Cristo. Jesus diz: “ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair” (João 6.44). Essa atração graciosa de Deus, que precede qualquer resposta humana de fé, foi chamada por Santo Agostinho de graça preveniente (“que vem antes”).

A graça é salvadora. A graça de Deus é o próprio Espírito Santo agindo para convencer o mundo (Jo 16.8), abrindo nossos corações (At 16.14), conduzindo-nos bondosamente ao arrependimento (Rm 2.4) e dispondo-nos em lugares onde possamos encontrá-Lo (At 17.27). Paulo escreve que “a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens…” (Tito 2.11), o que nos leva ao próximo ponto.

A graça é universal. A Bíblia não diz que Deus derramou uma “graça comum” (não-salvífica) a todos enquanto reservou sua graça salvadora aos eleitos. A atração divina não se estende apenas aos eleitos: em João 12.32, Jesus diz: “e eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim mesmo”. Assim como em Adão todos pecaram, em Cristo todos recebem graça sobre graça (Rm 5.18). Deus deseja salvar a todos (1Tm 2.3–6). Parafraseando Abraham Kuyper, não há uma pessoa neste mundo acerca da qual Cristo não possa dizer: quero salvar! Mas eu não acredito que todos serão salvos. Isso seria universalismo. Há outro aspecto da graça que explica isso.

A graça é resistível. Isso significa que a forma como Deus escolheu agir nas pessoas é tal que elas são libertas para crer ou para rejeitar. A Bíblia está cheia de exemplos de pessoas que desprezaram a graça divina que lhes foi outorgada, tanto no Antigo Testamento (Is 5.1–7) quanto no Novo Testamento (Mt 23.37; Lc 7.30; At 7.51–53). A salvação é pela graça, mediante a fé (Ef 2.8, Jo 3.16–18).

A graça é generosa. “O Senhor é bom para todos, e as suas misericórdias são sobre todas as suas obras” (Sl 145.9). Eu duvido muito que Deus, podendo escolher um plano que refletisse sua essência de amor e justiça, optasse por se contentar apenas em fornecer bênçãos temporárias aos seres humanos. A boa notícia é que Deus “deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” e “Cristo entregou a si mesmo como resgate por todos (1Tm 2.4–6).

Por que eu não creio em uma graça comum?

Eu não creio em uma graça comum porque Deus se alegra em buscar e salvar o perdido, não apenas em dar bênçãos materiais para ele. Há festa no céu quando o pecador pela graça se arrepende, e não apenas quando ele (também pela graça) consegue, sei lá, compor uma sinfonia ou construir uma casa.

Que adiantaria ganhar o mundo inteiro e perder a comunhão com Deus, que é o bem mais importante? Que adiantaria ganhar toda a “graça comum” de Deus e perder a sua alma?

Lucas Martins
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Lucas Martins

Cristão, marido, pai, missionário. Formado em Teologia (Betel) e em Filosofia (UFC).